O canto do sofá

Desirée Lourenço
3 min readMay 13, 2021

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Antes mesmo da maçaneta se mexer, eu abri a porta. Nem deixei que ela tirasse a chave da porta. Ela olhou pra mim e aquele olhar atravessou minha carne e espírito. Eu senti. Era pesado, molhado, avermelhado. Era frio. Era o que diziam parecer a morte.

Entrou no nosso apartamento e passou diretamente por mim, sem nem me dar um boa noite. Fingiu que eu não estava na frente dela esperando para conversarmos. Achei melhor não falar nada e apenas fiquei encostada no batente da porta do quarto. A assisti ir até o banheiro, abriu a blusa social e ficou desfilando só de sutiã e calça jeans. Ela sabia como aquilo mexia comigo. E eu sabia que ela tava fazendo de propósito quando a peguei sorrindo de canto de boca ao se olhar no espelho. Ela sabia que eu estava olhando. Mas assim como o sorriso veio, no mesmo instante se foi. Se eu não tivesse tão atenta, não teria nem percebido.

Ei, não está com fome, minha rainha? a chamei pelo apelido favorito. Ela sempre chegava morrendo de fome e eu sabia disso. Nossa, que fome louca! Preciso comer agora! Ela falou e eu sorri a vendo passar por mim na porta do quarto e seguir para a cozinha. Ela abriu a janela, pegou uma marmita pronta e colocou no microondas.

Eu sei que você sempre reclama quando eu como no pote, mas dessa vez, sinto muito, comerei no pote. Eu sabia! Eu tinha certeza que ela faria isso só para me irritar. Ai, amor, se eu não fosse tão apaixonada por você e não estivesse tão vidrada nesse seu corpo à mostra, eu até brigaria com você. Mas tudo bem, minha linda, você pode comer no pote. Eu deixo.

Amor, lembra quando a gente falou que ia viajar, programou tudo, deixamos o carro preparado, com tanque cheio e tudo e um pouco antes de sairmos de casa, eu recebi uma ligação me chamando para aquele emprego que eu tanto queria? Nossa, você ficou tão irritada, mas tão irritada que, desde então, nunca mais gostou de me ver trabalhando naquela empresa de testagem de material elétrico. Se você não tivesse aceitado aquele emprego, bobinha… eu bem que avisei! Eu sei, eu sei! Mas olha, ficou tudo bem no final das contas, viu? Até conseguimos viajar e foi bem melhor do que teria sido! Agora, senta pra comer, vai! Comer em pé faz mal.

Ela me ignorou, ainda não tinha me perdoado totalmente. Continuou comendo em pé enquanto era observada pelos meus olhos preguiçosos que descansavam em seu rosto cansado. Seu olhar seguia frio, avermelhado, mas parecia ter ganho um pouco mais de vida. Devia ser a fome, ela sempre ficava muito mal humorada quando estava com fome.

Quando vi que pote de comida estava esvaziando, corri para o sofá e sentei no canto que ela mais gostava. Eu sempre fazia isso para irritá-la e hoje eu estava querendo sua atenção de qualquer forma, e ela parecia disposta a seguir me ignorando. Ei, princesa! Vem pro sofá, vem! Fica aqui comigo. Ela saiu da cozinha e veio em minha direção. Olhou profundamente, por tempo demais, me perfurou com os olhos e sorriu. Quer saber… nem gosto mais desse canto, ele é seu. Como assim? Ela não vai ficar irritada por eu estar aqui? Ela não quer mais discutir comigo?

Ouvi ela falando no telefone com a irmã sobre como havia sido o dia. Vi ela mexendo no aparelho, navegando por coisas inúteis até parar em uma de nossas fotos antigas. Ela sorria, passando o dedo na tela e, finalmente, olhou de novo pra mim. Seus olhos não estavam tão frios. Estavam avermelhados, molhados, profundos e apaixonados. Eu só olhei de volta e mergulhei naquela imensidão.

Ah, sua bobinha, eu preferia ainda me irritar toda vez que você sentava no meu canto do sofá.

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Desirée Lourenço

Escrevendo para viver e sobreviver.